Cagarra 

Nome comum: Cagarra

Nome científico: Calonectris edwardsii

Estatuto de conservação mundial (IUCN): Quase ameaçada

Lista vermelha de Cabo Verde: Em perigo de extinção

Endemismo de Cabo Verde: Espécie endémica

Ordem: Procellariiformes

Família: Procellariidae

Descrição morfológica e identificação

A Cagarra apresenta uma plumagem castanho-acinzentada na parte dorsal, exceto as penas coberturas caudais que são mais claras.  A parte ventral é branca, contrastando com o castanho escuro das penas primárias, secundárias e retrizes. O bico é estreito, comprimido e de cor amarelo-acinzentado na base e mais escuro na ponta, que apresenta forma de gancho. A Cagarra atinge um comprimento médio de 42-47 cm, 420-540 g de peso e uma envergadura de asa de 101-112 cm (del Hoyo et al. 2019). Juvenis e adultos são morfologicamente semelhantes, e apresentam baixo dimorfismo sexual, sendo os machos ligeiramente maiores que as fêmeas.

Adulto de Cagarra

Distribuição

Reproduz-se em quase todas as ilhas de Cabo Verde, exceto no Maio e na Santa Luzia, e nos ilhéus Raso, Rabo-de-Junco e Curral Velho. Verificou-se à pouco tempo a nidificação na ilha do Fogo. Faz o ninho em buracos no chão ou cavidades rochosas que podem ser muito ou pouco profundas, estando presente em locais muito acessíveis no chão ou em zonas inacessíveis de falésias. Durante a reprodução encontra-se presente nas águas de Cabo Verde e na costa oeste africana desde o Senegal até à Mauritânia, migrando posteriormente para a América do Sul nas águas do Brasil  (González-Solís et al. 2009).

Mapa de distribuição da Cagarra em Cabo Verde

Cagarra a voar no mar

Reprodução e fenologia

Inicia a reprodução a partir do mês de março quando regressa aos mares de Cabo Verde e às suas colónias para acasalar. Coloca um único ovo anualmente no início de junho, após o qual a fêmea abandona o ninho por alguns dias para recuperar energias e reservas perdidas durante o processo de formação e postura, ficando o macho no ninho a incubar. A incubação dura aproximadamente 2 meses, durante a qual os machos e as fêmeas partilham os turnos de incubação durante 8 ± 4 dias seguidos (Paiva et al. 2015). As crias nascem entre o final de julho e o início de agosto. Nos primeiros dias as crias ainda não conseguem termorregular a sua própria temperatura corporal e por isso um dos progenitores mantêm-se com a cria durante todo o dia. Posteriormente, os progenitores só visitam o ninho à noite para alimentar a cria, sendo que estas visitas vão diminuindo progressivamente com o aproximar do final da época reprodutora (Paiva et al. 2015). As crias atingem um valor máximo de peso entre as 8-9 semanas (± 500 g), a partir do qual começam a diminuir de peso até aos ± 450 g e 300 mm de asa, acabando por abandonar o ninho, entre o final de outubro e o início de novembro (Rodrigues 2014).

Cria de Cagarra

Juvenis e adultos viajam para as águas do Brasil onde permanecem durante o inverno, antes de regressar novamente a Cabo Verde no início de março para se reproduzir, no caso dos adultos. Geralmente, os indivíduos imaturos do género Calonectris começam a visitar a colónia a partir dos 4 anos, mas a maioria só se reproduz aos 7 anos de idade (Jenouvrier et al. 2008).

Alimentação

Estudos de dieta da espécie, indicam uma dieta essencialmente baseada em peixes, alguns dos quais são de interesse comercial (Lopes et al. 2016) (Sardinella sp., Selar crumenophthalmus ou Decapterus sp.) ou contrário de outros, como o peixe agulha, (Platybelone argalus lovii), e lulas (Loligo sp.) (Hofstede & Dickey-Collas 2006, Rodrigues 2014). A Cagarra alimenta-se muitas vezes em associação com predadores pelágicos, como o atum, que encaminham as presas e outros peixes pequenos para a superfície (Weimerskirch 2007), que serão posteriormente capturados pelas aves. Durante a incubação viajam para a costa de África, procurando alimento nas águas mais produtivas do Senegal e Mauritânia, associadas ao fenómeno de upwelling, enquanto durante o crescimento das crias, ficam mais próximos da colónia, alimentando-se nas águas de Cabo Verde. No entanto, acabam por adotar uma estratégia dupla, durante esta fase, fazendo também algumas viagens mais longas para a costa de África de forma a melhorarem a sua condição corporal (Paiva et al. 2015). Durante a incubação, as Cagarras passam cerca de 8 ± 4 dias no mar à procura de alimento enquanto durante o período de desenvolvimento da cria o tempo de procura do alimento diminui para cerca de 2 dias no mar (Paiva et al. 2015).

Viagem de alimentação da Cagarra durante a incubação

Viagem de alimentação da Cagarra durante o cuidado da cria

Muda

A Cagarra faz uma muda anual completa de todas as penas de voo. A muda das penas primárias do género Calonectris é sequencial desde a primária mais interna até à mais externa e geralmente, nos adultos reprodutores, começa no final do período de cuidado da cria e termina nas áreas de invernada, enquanto nos adultos que falharam na reprodução a muda iniciar-se-á antes (Alonso et al. 2009, Ramos et al. 2009, Ramos et al. 2018). A muda das penas secundárias apresenta um padrão mais complexo: as primeiras penas a serem mudadas são as secundárias mais internas que começam a mudar ao mesmo tempo que as penas primárias mais internas, posteriormente começam a mudar também as secundárias mais externas em dois locais distintos (Ramos et al. 2009). A muda das penas rectrizes (caudais) mudam geralmente das penas mais centrais para as mais externas, mas o padrão não é tão consistente como nas penas primárias (Ramos et al. 2009). As penas corporais da zona ventral começam a mudar ainda em maio, mas é mais intensa em junho e julho durante a incubação (Monteiro & Furness, 1996). As penas corporais dorsais geralmente a partir do início de julho (Monteiro & Furness, 1996).

Vocalização

É uma espécie muito vocal nos locais de reprodução, tanto em voo como em terra, incluindo dentro dos ninhos. Distinguem-se bem os sexos através do chamamento, tendo os machos uma vocalização mais aguda comparativamente ao som rouco e grave produzido pelas fêmeas (Robb & Mullarney 2008).

Principais ameaças

Uma das principais ameaças que as populações de Cagarra sofreram foi a captura humana. Devido à intensa exploração e caça nos últimos 67 anos, a tendência populacional de cagarra decresceu até 2009 quando a ONG Biosfera I, começou por expor esta prática por via dos meios de comunicação social e estabeleceu no ilhéu Raso acampamentos com campanhas de proteção e conservação desta espécie. Um estudo com base em questionários realizado em 2005, estabeleceu que as Cagarras eram capturadas por pescadores de Santo Antão, indicando uma estimativa de 9,000-15,000 crias de Cagarras capturadas todos os anos nos ilhéus Branco e Raso, durante o mês de outubro (Monteiro, 2005). Estas capturas provêem de uma tradição muito forte na ilha, em duas localidades principalmente (Paúl e Ribeira Grande), onde se fazia um prato tradicional (caldo de Cagarra) muito apreciado pelas populações locais, que também enviavam para familiares e amigos fora da ilha. O perigo da caça por pescadores, parece ter cessado no ilhéu Raso, desde 2009 quando a Biosfera e outros parceiros começaram a fazer a sensibilização dos pescadores e proteção das Cagarras. No entanto, a captura poderá ainda ocorrer noutras ilhas onde não haja fiscalização (Biosfera, comunicação pessoal), como por exemplo na Brava (Projecto Vitó, comunicação pessoal). Hoje, podemos afirmar que houve uma sensibilização bem-sucedida na comunidade piscatória, sendo que de 4 em 4 anos dão o seu contributo para a conservação da espécie, em parceria com a Biosfera e Direção Nacional do Ambiente, realizando censos de cagarras no início da época reprodutora. O último censo realizado no Ilhéu Raso em junho de 2018, indicou uma estimativa 6,544 casais reprodutores (Biosfera comunicação pessoal).

A introdução de mamíferos invasores, como gatos e ratazanas nas ilhas onde a Cagarra nidifica é também uma forte ameaça para esta espécie, sendo facilmente predada.

No mar, a principal ameaça a que está sujeita é a captura acidental em artes de pesca. Durante o período reprodutor, a Cagarra alimenta-se junto à costa africana (Paiva et al. 2015), onde o risco de captura acidental por interação com as embarcações de pesca desta zona é elevada, dado o tamanho elevado da frota nacional e internacional, legal e ilegal que opera nesta zona (Belhabib et al. 2014). Infelizmente, esta ameaça não ocorre somente durante o período de nidificação, mas também poderá ocorrer fora deste, durante a migração ou a invernada no Sul do Brasil e Uruguai (González-Solís et al. 2007), onde já foram registadas elevadas taxas de captura acidental de outras aves marinhas como pardelas e albatrozes (Tuck et al. 2003, Bugoni et al. 2008). Em Cabo Verde, também poderá ocorrer a captura intencional de Cagarra no mar.

Crias de Cagarras capturadas para consumo humano

Imagens